Uma das mais significativas manifestações populares características da Semana Santa em Ouro Preto é a criação dos tapetes devocionais que recebem a Procissão da Ressurreição na manhã do domingo de Páscoa. Moradores e turistas se unem na noite de sábado, a partir das 20hs, para enfeitar e adornar as ruas da cidade histórica.
A festa do Domingo de Pascoa ganha então um grande colorido sobre o tapete que serve para o desfile mais uma vez dos personagens bíblicos e as irmandades. A Procissão da Ressurreição marca assim, o final da Semana Santa que comemora a ressurreição de Jesus Cristo para a vida eterna.
Semana Santa em Ouro Preto
O evento mais marcante da Semana Santa ocorre na Sexta-Feira da Paixão, começando com o Descimento da Cruz. O drama da morte de Cristo é apresentado aos fiéis de forma viva.
Mas cada dia da comemoração faz referência a um acontecimento:
O domingo de ramos refere-se à entrada do Rei, o Messias, na cidade de Jerusalém, para comemorar a páscoa judaica. Na segunda-feira seguinte foi o dia da unção em Betânia, quando Jesus visita a casa de Lázaro, após ressuscitá-lo, onde Maria, uma de suas irmãs, o unge com perfumes; na terça-feira, também é chamada de “terça-feira da polêmica” porque Jesus confronta os líderes religiosos de seu tempo; a quarta-feira é conhecida como o dia das trevas, no calendário católico marca o fim da Quaresma e o início da Páscoa; a quinta-feira foi a última ceia com seus apóstolos. A sexta-feira foi o dia do seu sofrimento, sua crucificação. Sábado é conhecido como o dia da oração e do jejum, onde os cristãos choram pela morte de Jesus. E, finalmente, o domingo de Páscoa, o dia em que ressuscitou e encheu a humanidade de esperança de vida eterna.
Domingo de ressurreição: As transformações de Cristo
Em meio às atividades rituais da Semana Santa sucedem-se diversas imagens que apresentam a pessoa do Cristo. Primeiro foi o Senhor dos Passos que, depois de sua via-crúcis, foi substituído pelo Senhor Morto, e volta a repousar no altar lateral da Matriz do Pilar. O Senhor Morto, que foi crucificado e carregado em procissão, enquadra-se agora dentro de uma vitrine do Museu de Arte Sacra, localizado no porão da Matriz do Pilar. Assim, as imagens envolvidas nos atos da Semana Santa começam a retomar seus lugares habituais. O acesso a elas se restringe após as procissões da Semana Santa, muitas delas ficando em seus altares e salas de museu, fora da possibilidade de contato físico, exceto pelo olhar, por parte do público, seja ele composto por fiéis e/ou por turistas.
Mesma coisa ocorrerá com a imagem de Nossa Senhora das Dores, mãe e companheira do Cristo nas processões. Ela, que precede à aparição do filho na festa a traves dos Setenários das Dores (semana previa a Semana Santa) e do Depósito de Nossa Senhora das Dores (primeira procissão da Semana Santa), concluída sua participação, a imagem pertencente a paroquia do Pilar voltará a seu altar lateral na matriz, enquanto a imagem de Antônio Dias irá para a sacristia da Igreja de Nossa Senhora Das Dores e Calvário.
Hoje, Domingo de ressurreição, a última imagem será trocada, todavia, não por outro ícone, como ocorrem em cidades que realizam as procissões do domingo de páscoa com uma imagem do Cristo Ressuscitado, mas por outra forma de personificar o corpo de Cristo. Em Ouro Preto, a representações de Jesus se faz a traves do sacramento da eucaristia, o Santíssimo Sacramento, que fora instituído por Jesus Cristo na última ceia com os apóstolos. Assim, o corpo se Cristo está materialmente presente a traves da hóstia consagrada.
O pão/hóstia em corpo de Cristo, é sacralizado pela atuação de um sacerdote, no contexto de uma missa, que reproduz parte do sacrifício original. Para consagrar a hóstia (e o vinho que o acompanha, como sangue divino), o padre repete as palavras e o ato físico que teria sido produzido por Jesus entre seus discípulos na última ceia antes de sua morte.
Tapetes de Serragem
Os tradicionais tapetes feitos de serragem enchem de cor as ruas e ladeiras de Ouro Preto durante a procissão da ressurreição de Cristo no domingo de Páscoa. A celebração é acompanhada por fiéis e turistas de várias partes do país, que fazem questão de acompanhar as festividades e confeccionar os tapetes de serragem.

Origem dos tapetes devocionais Trazida pelos portugueses durante o Brasil Colônia, a tradição foi difundida junto ao estilo barroco, que domina a arquitetura das casas e igrejas de diversas cidades mineiras. Em Ouro Preto, a prática existe desde 1733, quando a matriz do Pilar foi reinaugurada com a festa do Triunfo Eucarístico. Na procissão do Triunfo, junto aos sacerdotes, seguiam os fiéis pertencentes a irmandades da cidade, todos com trajes de gala. As ruas entre a Igreja do Rosário e a Matriz do Pilar foram cobertas de flores e folhagens, enquanto as janelas das casas receberam sedas e tecidos adamascados, além de adornos de ouro e de prata.
Em 1963, quando Nossa Senhora do Pilar foi escolhida a padroeira de Ouro Preto, os tapetes voltaram a ser feitos. A população abraçou o ato e os tapetes passaram a ser confeccionados anualmente, na noite do Sábado Santo, para a procissão do Domingo da Ressurreição, que percorre o caminho ornamentado com serragem ao longo da noite de sábado e madrugada do domingo.
Personagens bíblicos
Por um lado, a procissão que se realiza logo na manhã do domingo (horário em que a luz forte do sol faz sentir o contraste com a escuridão da noite da última sexta-feira), favorece a manutenção de uma imagem de alegria e de congraçamento geral.

Os personagens bíblicos que são mobilizados no cortejo da páscoa substituem o luto e o sofrimento dos dias anteriores (expressados através das cores roxa e vermelha, lembremos) por peças de roupa repletas de branco e dourado.
O desfile das figuras bíblicas inicia-se pela ala que faz parte do Antigo Testamento. Depois, o mesmo se repete com as figuras do Novo Testamento. A apresentação de cada uma delas segue a ordem cronológica de sua aparição na história bíblica, indo das mais antigas às mais recentes. Nesse encadeamento, as personagens do Gênesis são sucedidas por várias outras até chegar àquelas que foram contemporâneas ao Cristo, como Maria Madalena, João Evangelista, as Carpideiras e a Verônica.
No final da procissão é oferecido aos pequenos anjinhos uma tentadora recompensa pela importante participação: canudos em forma de bico repletos de amêndoas, guloseima única e exclusiva dos graciosos atores alados.
Composição da procissão
Seguindo a lógica que marcou a última procissão do Enterro, o cortejo do domingo de manhã segue um trajeto alternado entre os anos pares ou ímpares, sempre organizado, todavia, com o ponto de partida sendo a paróquia que sedia a festa e o de chegada a outra, que repetirá esse procedimento no ano seguinte.
A respeito de sua composição e organização interna, observa-se que a caminhada ritual da páscoa também reproduz o esquema mais geral observado nas procissões anteriores. Ela se compõe pelos seguintes grupos:
O guião (cujo estandarte, nesse dia, contém uma representação de uma hóstia num ostensório); as crianças vestidas de anjinhos; as figuras bíblicas do Antigo ao Novo Testamento; a guarda romana (apenas a da paróquia que sedia a festa); as Irmandades, Ordens Terceiras e demais associações leigas; os ministros da eucaristia, coroinhas e demais auxiliares leigos dos padres; os apóstolos menores;200 as Virtudes; Maria Madalena e João; os Anjos de Prata; os padres e, destacado logo após dele, aquele que carrega o “santíssimo” (uma hóstia no ostensório); finalmente a banda de música.
Nesta procissão, reforçando a ideia de que se trata de um contexto novo, distinto dos anteriores dias, a guarda romana, por exemplo, sai sem as suas armas de guerra (lanças e escudos). Os capacetes dos soldados também são retirados de suas cabeças e carregados sob os seus braços.
A Verônica já não desenrola seu sudário, nem canta seu lamento. Os sinos das igrejas voltam a tocar e, de um modo geral, as pessoas que se reúnem nesse cortejo se deixam contaminar pela beleza das formas, cores e sons que são justapostos para celebrar a vitória do Cristo sobre a morte.
Já as personagens de Maria Madalena e João são marcadas por outras variações. Ela, que na cena do Calvário segurava a coroa de espinhos que seria colocada no Senhor Morto, agora leva o seu perizônio (o sudário que envolvia o corpo do santo). Ele, por sua vez, levava a placa com a sigla I.N.R.I. na procissão do Enterro, e nessa procissão de domingo segue com um livro do Evangelho. Essas variações, como se observa, ajudam a reforçar a percepção de passagem de tempo, bem como da transformação que lhe é associada.

Tal como ocorreu com o Senhor dos Passos e o Senhor Morto, agora é a eucaristia que se torna alvo de atenção especial, sendo carregada sob a proteção – e o destaque – de um pálio sustentado por vários homens. No centro dessa tenda, segue um dos sacerdotes locais, com uma vestimenta específica para a ocasião. Todo de branco e dourado, as cores que compõem o conjunto hóstia-ostensório, ele carrega essa outra forma de apresentação do corpo de Cristo, não mais flagelado ou morto, mas ressuscitado.
Neste dia em que se celebra a ressurreição cristã, o padre não apenas acompanha a imagem, mas, em sua performance, ele se torna uma extensão do corpo de Cristo segurando a imagem do Santíssimo, função antes exercida pelos andores que transportavam as imagens das procissões passadas.
Também as toalhas nas janelas e casarões do centro são sobrepostas (senão substituídas) por outras novas, brancas, com rendas, ou multicoloridas. Nesse ambiente iluminado, o branco que se destaca por vários lados, inclusive no Santíssimo Sacramento, aparece como uma espécie de bandeira de paz que se ergue, finalmente, entre Pilar e Antônio Dias.
Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora da Soledade: Sempre a mesma
Enquanto as imagens/corpos de Jesus se alternavam entre o Senhor dos Passos, o Senhor Morto e a eucaristia (isso sem falar nas outras formas de apresentação do santo, como o Ecce Homo e o sudário da Verônica), a Virgem Maria acompanhou todos os eventos da sua paixão mantendo-se sempre a mesma, das Dores.
Cabe mencionar que existem duas imagens dela em Ouro Preto e sua presencia e alternada nos anos pares (a imagem do Pilar), nos anos impares (a imagem de Antônio Dias).
A constância dessa personagem santa, no entanto, acaba sendo alterada, tal como foi o Cristo, quando chega o momento de festejar a ressurreição. Embora não participe da procissão do domingo de páscoa, a Nossa Senhora das Dores aparece em uma cerimônia ao fim desse dia (numa missa realizada às 7 horas da noite). Ali, ela aparecerá transformada. No seu caso, porém, essa mudança não corresponde a uma substituição ritual por outro ícone, mas sim pela troca de suas vestes. A mesma imagem que foi carregada nas procissões assume uma nova pele, abandonando as Dores para assumir a de Nossa Senhora da Soledade. No fundo, as duas personas em questão remetem à mesma pessoa, mesma Nossa Senhora, porém a última apenas se apresenta publicamente quando as suas sete dores chegam ao fim.
Se as roupas e acessórios mudam, bem como o nome da santa, o seu rosto e os sinais expressivos permanecem os mesmos.
Vestida inteiramente de branco, ela não carrega mais os atributos que lhe caracterizavam anteriormente. O diadema com as sete estrelas sobre a cabeça, o lenço que carregava em uma das mãos e o escapulário, que ficava na outra, foram abandonados. Da mesma forma, a adaga que transpassava seu coração não terá mais espaço nessa nova versão da santa. Em um momento final da missa de domingo, uma das senhoras que moram nos arredores da igreja se prontifica a retirar esse objeto (que remetia à dor) e substitui-lo uma flor (uma palma) de metal.
Como co-protagonista da Semana Santa, ela é a primeira e a última a aparecer na festa (embora, no último dia, não mais em procissão, mas no interior de uma igreja). O ciclo ritual da Semana Santa se inicia e se encerra com essa santa cuja identidade é marcada pela longa duração de suas dores.

Quando se encerra a festa, a imagem de Nossa Senhora ganha destinos variados em função da paróquia à qual ela pertence. No caso do Pilar, a imagem reassume (logo na segunda-feira seguinte) o seu papel “das Dores”. Sob os cuidados de sua zeladora, ela é recolocada sobre o altar lateral esquerdo da matriz, lugar de onde ela poderá voltar a encarar a imagem do Senhor dos Passos, situado no altar do lado oposto. E quando a imagem utilizada na festa é a do Antônio Dias, ela não volta imediatamente para o seu lugar de origem (lembremos, a sacristia da Capela das Dores, onde foi efetuado o seu Setenário). Ao invés disso, ela permanecerá, embora não exposta, na matriz do Antônio Dias até a época de celebração do dia das mães. Nesse momento, ela será vestida novamente de branco e, então, seguirá em procissão até a Capela das Dores. Ali, depois que essa outra festa se encerra, ela retomará o lugar na sacristia.

Apesar da decalagem temporal entre o retorno de cada imagem, vemos que ambas as Nossas Senhoras têm como destino comum (cada uma em seu ano) retornar às igrejas de origem, aos mesmos papéis que assumiam antes da Semana Santa. Uma como imagem que poderá ser contemplada como “obra de arte”, barroca, sacra, enquanto outra permanecerá como que oculta (sem os seus atributos) até o próximo ano, guardada na sacristia.
fonte:
- PEREIRA, Edilson Sandro. O Teatro da Religião: A Semana Santa em Ouro Preto vista a partir de seus personagens. 326 f. Tese (Doutorado). UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2014 (1)
- Tapete de serragem da semana santa: Aspectos desenhísticos de uma tradição da cidade de Ouro Preto
- Crédito foto: Ane Souz – Elvira Nascimento
- http://portal.iphan.gov.br/
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