Porque Ouro Preto tem duas Igrejas das Mercês? … a Mercês de Baixo e a Mercês de Cima

Em Ouro Preto a devoção a Nossa Senhora das Mercês existem duas igrejas onde ela é a padroeira.  Os nativos diferenciam de modo peculiar, baseados na topografia da montanhosa cidade: uma é a “Mercês de baixo” (cujo nome correto é Nossa Senhora das Mercês e Perdões), situada nas baixadas do bairro dos Paulistas, a caminho da Nossa Senhora da Conceição de Antonio Dias, e a outra é a “Mercês de cima” (situada acima da cidade e bem próxima do Hospital da Irmandade da Misericórdia).

A Virgem espanhola


A Ordem das Mercês durante o seu primeiro século de vida, foi uma ordem religioso-militar que também acolheu os leigos, o que possibilitou que as suas regras não fossem tão rígidas quanto ao cumprimento da vida de clausura. Por isso, os mercedários puderam participar como capelães ou vigários militares em todas as expedições de descoberta para o novo mundo. Eles compartilharam com os franciscanos e dominicanos a evangelização da América, à qual chegaram pela primeira vez na segunda viagem de Colombo (1493). Em 1514 já tiveram seu primeiro convento fundado em Santo Domingo e de lá se expandiram para Guatemala, Peru, Tucumán, Bolívia, Chile, Brasil, etc.

A veneração a Nossa Senhora das Mercês é muito popular também na parte hispânica da América. Alguns países da América do Sul a têm como padroeira, como é o caso da Argentina, República Dominicana, Bolívia, Chile, Equador, Peru, Panamá, entre outros. É denominada de “Virgem Generala” por ser protetora do Exército Argentino e das forças armadas do Peru e do Equador. Além disso, também é protetora das prisões na Espanha.

O culto a Nossa Senhora das Mercês não foi escolhido ao acaso pelos “pretos crioulos” no Brasil. A Virgem de las Mercedes é uma invocação “espanhola” que data de aproximadamente 1218, período em que os Mouros dominavam parte da península ibérica e transformavam os cristãos em seus cativos. São Pedro Nolasco começou a libertar os cativos a peso de ouro e, em suas viagens a terra dos mouros resgatou vários escravos. Durante uma de suas viagens teve um sonho com a visão da virgem Nossa Senhora das Graças, que pediu para que ele criasse uma ordem religiosa para resgatar os cativos.

Contando com o consentimento do rei fundaram um convento, no qual se instalou Pedro Nolasco. Depois vieram se ajuntar a este convento, cavaleiros de Espanha, fundando-se a Ordem Real e Militar de Nossa Senhora das Mercês da Redenção de Cativos. Os papas Honório III, Gregório IX e João XXII aprovaram a ordem, que se espalhou por toda a Europa e posteriormente para as Américas.

A Irmandade de Nossa Senhora das Mercês 


Igreja São José, Ouro Preto (MG)

No Brasil, o culto da Virgem Nossa Senhora das Mercês se difundiu principalmente entre os pardos. Os primeiros mercedários que chegaram ao Brasil vieram de Quito, no Peru, no ano de 1639, com Pedro Teixeira, e se estabeleceram em Belém do Pará.

Em Minas Gerais, tornou-se extremamente popular. A irmandade de Nossa Senhora das Mercês em Ouro Preto, oriunda a partir da Arquiconfraria da Igreja São José, em data que pode ser localizada entre os anos de 1740 e 1754, permaneceu lá por cerca de 20 anos. A Arquiconfraria acolhia outras associações de leigos, dentre elas a do Cordão de São Francisco, a de Santa Cecília, a de Nossa Senhora do Parto, a das Mercês e a de Nossa Senhora de Guadalupe.

Esta irmandade era uma associação de pardos e crioulos, representante de segmentos que buscaram afirmação social na antiga Vila Rica, sobretudo, a partir da década de 1740, quando os pardos começaram a adquirir presença na estrutura social da época.

Matriz de Antônio Dias (arriba), Matriz do Pilar (abaixo)

 

 

Aquela associação de mercedários instalada em São José sofreu uma ruptura e cindiu-se em duas: uma estabeleceu-se na Matriz do Pilar e a outra se estabeleceu na Matriz de Antônio Dias.

  • A Freguesia de Antônio Dias, adquire depois templo próprio na Igreja Mercês de Baixo.
  • A Freguesia do Pilar, adquire depois templo próprio na Igreja Mercês de Cima.

Assim, constitui-se a Irmandade de Nossa Senhora das Mercês e Perdões que se localizava numa região geográfica abaixo da outra irmandade de Mercês, ficando conhecida também como “Mercês de baixo” e a outra como “Mercês de cima” ou “Mercês e Misericórdia”.

Tal situação despertou desavenças entre os sodalícios por décadas. Foi registrado no livro de termos que a Irmandade “de cima” buscou usurpar os benefícios e indulgências da Irmandade de Mercês dos Perdões. A contenda entre as duas irmandades de mesmo orago vai se arrastar por décadas e culminou em disputas nos tribunais eclesiásticos da Cúria de Mariana.

A Matriz de Antônio Dias


Igreja Nossa Senhora da Conceição, Matriz Antônio Dias

Em sua chegada ao território mineiro o bandeirante  construiu uma capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição, por volta de 1699. O rápido crescimento da população do arraial de Antônio Dias exigiu a construção de um novo templo. Assim sendo, em 1727 iniciou-se a construção da atual Matriz de Antônio Dias cujas obras se estenderam até a segunda metade do século 18.

As duas freguesias de Ouro Preto eram delimitadas pelo Morro de Santa Quitéria, a Freguesia de Antônio Dias foi ocupada pelos paulistas, e a Freguesia do Pilar, pelos portugueses.

Nos Setecentos essas irmandades religiosas agrupavam os segmentos étnico-sociais mas variados: dos brancos e abastados (Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora da Conceição e Ordem Terceira da Penitência de São Francisco de Assis), dos pretos (Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz) e dos forros e cativos (Ordem Terceira de Nossa Senhora das Mercês e Perdões).

No século XVIII havia 15 associações leigas abrigadas na Freguesia de Antônio Dias:

A irmandade do Santíssimo Sacramento foi a primeira da Freguesia de Antônio Dias. Fundada em 1717, desde o inicio da Matriz, ocupou o altar-mor.

Cada uma das irmandades como, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário, a Ordem Terceira das Mercês e Perdões e a Ordem Terceira de São Francisco de Assis, vieram a construir seus próprios templos, quando a quantidade de fieis e recursos somasse para realizar o sonho de uma Capela própria dedicada a sua santa veneração.

O conflito entre as irmandades


Antiga Vila Rica

A história dos mercedários leigos na antiga Vila Rica é pontuada por conflitos e controvérsias, que resultaram, por volta do ano de 1760, na cisão do referido grupo em duas alas, ou seja, criaram-se duas irmandades de Nossa Senhora das Mercês num mesmo lugar; denominadas respectivamente irmandade de Nossa Senhora das Mercês e Perdões e irmandade de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia. Situação reforçada a partir da criação das respectivas sedes ou igrejas, sendo que o estabelecimento da Irmandade dos Perdões ocorreu a partir de 1760 e o da Misericórdia após o ano de 1771.

Registram-se problemas ainda outros desdobramentos a partir da dissidência ocorrida a partir da elevação dessas irmandades à categoria de ordens terceiras na primeira metade do século XIX. No caso da Irmandade das Mercês e Misericórdia, essa passou a ser designada como ordem terceira a partir de 1838. Tal situação despertou desavenças entre os sodalícios por décadas. Foi registrado no livro de termos que a Irmandade “de Cima” buscou usurpar os benefícios e indulgências da Irmandade de Mercês dos Perdões.

Finalmente, em 17 de agosto de 1847, por meio da bula Exponi Nobis, Pio IX assinalava constituídas em Ordem Terceira as duas corporações; e o direito de precedência ficou de vez conferido à Ordem das Mercês e Perdões.

O fato de duas irmandades das Mercês permanecerem relativamente próximas uma da outra, na mesma cidade não respeitarem determinação prevista na Constituição Quaecumque, texto elaborado no papado de Clemente VIII (1592-1605) e vigente no século XVIII. Nesse documento, ficam estabelecidos parâmetros para a localização de associações afins num mesmo lugar. Recomendava-se a distância de três milhas entre organizações religiosas semelhantes.

Evidentemente significava que tais agremiações possuíam prerrogativas como as atribuídas às Irmandades do Santíssimo Sacramento, que poderiam coexistir num mesmo lugar sem que isso ferisse a legislação canônica, aspecto previsto no conteúdo da Sagrada Congregação de Indulgências.

A contenda entre as duas irmandades de mesmo orago vai se arrastar por décadas e culminou em disputas nos tribunais eclesiásticos da Cúria de Mariana.

Nossa Senhora das Mercês e Perdões


Partes dos mercedários dissidentes se instalaram do outro lado do Morro da Quitéria, no bairro de Antônio Dias. A Ordem começou como simples irmandade da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, sendo ereto o altar lateral em 1743 com o título de “Nossa Senhora das Mercês dos pretos crioulos”.

Também conhecida como Mercês de Baixo, o templo católico está localizado no alto de uma colina, com vista para a parte velha de Ouro Preto

Uma vez reunidos os recursos e dinheiro suficiente para a construção de um próprio templo, o primeiro passo era escolher a locação. Foi então em 1760 que o padre Fernandes Leite, administrador da capela sob a invocação de Bom Jesus dos Perdões, doo à Irmandade de Nossa Senhora das Mercês.

Aquela pequena capela construída no ano de 1742 ficava detrás dos atuais terrenos da Igreja São Francisco de Assis, no Largo do Coimbra, passa então a ser conhecida sob a denominação de Nossa Senhora das Mercês e do Bom Jesus dos Perdões, e só depois veio a simplificação do nome: Nossa Senhora das Mercês e Perdões. 

Sendo assim, a consolidação da fé sob o orago de Nossa Senhora das Mercês dos Perdões foi ritualizada em forma de procissão desde a Matriz da Senhora da Conceição de Antônio Dias aos 17 dias do mês de setembro de 1764 de três imagens: a Senhora das Mercês além de outras duas de São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato, os fundadores da devoção à redentora dos cativos.

Altar-mor


Inúmeros artistas que se destacaram na produção arquitetônica do Ciclo do Ouro em Minas Gerais trabalharam nestas igrejas, dentre eles o grande Mestre Aleijadinho.

O altar-mor em ambos os dois casos é ocupado pela imagem da padroeira Nossa Senhora das Mercês e os nichos laterais pelos santos fundadores da Ordem Mercedária, São Pedro Nolasco e São Raimundo Nonato.

Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia


Em 1771, iniciou;se a construção da propria igreja, arrematadas por Henrique Gomes de Brito em terreno doado pela Câmara “acima dos quartéis” embora tivessem evoluído rapidamente, apenas pequena parte da igreja encontrava-se concluída por ocasião da trasladação da imagem de Nossa Senhora das Mercês da Igreja de São José para a nova capela, em fins de 1773.

Conhecida também como a Mercês de Cima, foi construída entre 1771 e 1793

Antes mesmo da conclusão das obras, uma parte da construção ameaçava ruína, determinando a sua reconstrução. Ao que parece, estas obras tiveram início em princípios do século XIX e se estenderam por mais de 60 anos. Nesta fase construtiva, o projeto inicial foi alterado, advindo dessa mudança a substituição por torre única central.

Ainda com relação ao montante de artistas e artífices envolvidos na execução da Igreja das Mercês e Misericórdias de Ouro Preto é fato notório que muitos deles também participaram de obras em outras igrejas, como as Igrejas do Rosário, de São José, de Santa Efigênia, de São Francisco de Assis, das Mercês e Perdões, da Matriz do Pilar e do Carmo, em Ouro Preto, e as Igrejas da Sé, de São Francisco de Assis e do Carmo, em Mariana.

A fachada só foi concluída em princípios do século XIX, ela não comportava torres e que por volta de 1840 ainda se encontrava ainda inacabada. A incorporação da torre única centralizada desorganizou o espaço já construído do coro, como pode ser visto no interior da igreja.

 

fonte:

  • Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Misericórdia em Ouro Preto: religiosidade e rivalidade nas Minas Setecentistas – Marcelo Almeida Oliveira (1) 
  • Fé e Cultura Barroca sob o Manto Mercedário: Hierarquias, devoções e sociabilidade a partir da irmandade de Nossa Senhora das Mercês de Mariana – Vanessa Cerqueira Teixeira (2) 
  • A Irmandade Mercês dos Perdões e a formação de identidades em sodalícios negros: Minas Gerais, 1763 a 1810 – ANA ALVARENGA DE SOUZA (3)
  • http://portal.iphan.gov.br/

 

 

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