Na década de 1990 o tango voltou com força total à cultura portenha graças ao interesse do público jovem. Declarado patrimônio da humanidade pela Unesco, hoje o ritmo impera na capital argentina existindo diversas opções de orquestras formadas por músicos jovens, que tocam desde os temas mais clássicos, até releituras e composições modernas.
Essa tendência afirma um circuito que disparou nos últimos anos: o Tango Off, que conta com expoentes, organizadores e agitadores próprios. Hoje, uma série de salões, ciclos e festivais de bairro dão forma a este submundo dominado pelos bandoneons e a dança. Tal é o caso da Maldita Milonga organizada por Laura Heredia e a orquestra típica El Afronte, no bairro de San Telmo.
Tango tradicional e Tango Off
Buenos Aires está repleta de tanguerías, casas de show com orquestras e bailarinos ao vivo. Os espetáculos são grandiosos, com coreografias sofisticadas e músicos de primeira linha. Muitas casas oferecem um pacote com jantar, os famosos “cena-show”. É o programa preferido dos turistas estrangeiros.
Mas também existem os locais conhecidos como Milongas, esses lugares são bailes que preservam a verdadeira essência do tango. Ao contrário das casas de shows para turistas, são frequentados pelos próprios portenhos, e quem quer realmente viver a experiência dessa dança única precisa, pelo menos, arriscar alguns passos nesses locais.

O fenômeno do Tango Off não é novo, mas tem se consolidado nos últimos tempos: são aulas de dança que culminam com os grupos que organizam o encontro apresentando-se ao vivo diante dos fãs que assistem as aulas. Em diferentes lugares, vários grupos apostam nesta experiência: Orquesta Típica Andariega, Mal Llevado, Sexteto Fantasma, Rascasuelos, Rascacielos, Orquesta Victoria, Amores Tangos, La Siniestra, Orquesta Típica Almagro, Quinteto Varietal, Orquesta El Arranque, Orquesta Típica Fernandéz Fierro, etc.
A equação parece fechar por todos os lados: para os músicos é a possibilidade de dar continuidade às suas apresentações; para os bailarinos, é o resgate da deliciosa tradição de ter as orquestras se apresentando para eles.
Em 2006 o panorama das orquestras com idade média de vinte a vinte e cinco anos cresceu e despertou um ressurgimento do formato típico das orquestras: Fervor de Buenos Aires, El Afronte, La Brava, La Imperial, La Furca, La Bidú de Florencia Varela e Vayan Saliendo de Avellaneda, entre outros, agrupados na UOT (União de Orquestras Típicas), animam a cena atual. Todos concordam em vários pontos: o uso de instrumentos acústicos; a criação de novos tangos e arranjos originais de clássicos; um vestido despojado; uma formação no mínimo de dez integrantes e um repertório que aborda diferentes estilos.
Para Gabriel Atum, violinista e fundador de El Afronte e promotor da UOT, chegou o momento das orquestras: “é normal voltar à orquestra típica. Embora estejamos todos a milhares de quilômetros do som das orquestras típicas dos anos 40. Temos que reinventar tudo, há uma diferença de atitude nos meninos. É algo que os nossos velhos perderam lá por causa do Clube do Clã (movimento ie ie ie dos anos 70), mas agora estamos aqui para recuperar o típico com o nosso próprio som “.
A Orquestra Típica El Afronte
A Orquestra Típica El Afronte é um grupo formado em 2004 com o objetivo de expressar e divulgar o Tango. Em seus 17 anos de história, a orquestra já participou de inúmeros shows em milongas, festivais e eventos em Buenos Aires e outras cidades da Argentina. Fez inúmeras tournées, levando as suas novas criações de tango aos mais diversos recantos do mundo, visitando países da Europa, Alemanha, Bélgica, Croácia, França, Itália, Polónia, Suécia e Suíça. E Brasil e Colômbia na América do Sul.
Desde a década de 1940, quando as orquestras gravavam até quatro discos por ano e depois acabaram quase desaparecendo de cena, não se registrava o atual crescente movimento das novas orquestras típicas entrando para gravar nos estudos.
A Orquestra Típica El Afronte não tenta recriar os ambientes do tango do passado. Seu objetivo é continuar ampliando a tradição de mudança e renovação que sempre existiu no gênero, preservando suas características dançantes, assim como a sonoridade dos instrumentos acústicos.

“A Orquestra Típica El Afronte surgiu há quase 17 anos, com a ideia de explorar o gênero tangueiro, mas com uma pegada original e independente. Como cantor, minha busca sempre foi, a partir da técnica, buscar timbres novos e que se distanciassem do estilo tanguero tradicional. Me concentrei nas interpretações com carga dramática, em avivar minhas performances com um compromisso no desenvolvimento das minhas habilidades histriônicas. É um trabalho que faço em conjunto com Mariano Bustos, o compositor das canções da banda”, diz Marco Bellini cantor da Orquestra Típica El Afronte.
“Por um lado, eu tenho influências dos grandes cantores das orquestras de Pugliese e Troilo. Especificamente, Maciel, Fiorentino, Ruiz e Goyeneche marcaram meu desenvolvimento como cantor. Mas seria impossível cantar como canto hoje sem ter escutado desde cedo cantores como Robert Smith, do The Cure, David Bowie, Frank Sinatra e Jacques Brel”, diz Marco.
As milongas dirigidas pelos músicos se espalham por diversos pontos da cidade e têm uma dinâmica própria: são organizadas em cooperativas, seus preços são acessíveis aos bailarinos aficionados e ao público em geral, e costumam começar com a aula, continuar com a apresentação dos convidados e culminar com o show da orquestra que organiza o evento. A divulgação nas redes sociais e o boca a boca têm ajudado muito esses espaços na rota alternativa do tango.
Para Marco Bellini, cantor de El Afronte, uma orquestra típica que, além da Maldita Milonga às quartas-feiras organiza também a Bendita Milonga todas as segundas-feiras , segundo ele houve uma mudança cultural nos últimos anos. Ele garante que o trabalho de abertura dos professores de dança e o papel de produtores assumido pelos músicos foi fundamental. “Na nossa milonga, os 11 integrantes da orquestra cuidam de tudo: montamos palco e as mesas, fazemos a publicidade, cuidamos das reservas”, detalha Marco.
Além de resgatar a imagem cativante das orquestras tocando ao vivo para os bailarinos, essas experiências estão quebrando a inércia de que as salas de dança e os espaços de show funcionam como dois ambientes distintos, entre uma certa desconfiança e uma certa indiferença mutua. Esta comunhão acontece desde um lugar genuíno, num circuito que continua a crescer a um ritmo lento e constante, principalmente porque não é massivo. Embora todos os músicos consultados concordem que uma nova era de ouro do tango está surgindo.
“Aos poucos uma velha imagem do tango vai mudando e os meninos vão se aproximando para escutar. Eles gostam desse coletivo que tem tantos músicos; ao mesmo tempo, o som chama a atenção deles ao ver tocar tango um grupo tão grande . É um formato bem argentino”, diz Marco Bellini.
Parece óbvio dizer isso, mas Aníbal Troilo era um jovem de vinte anos quando formou sua primeira orquestra em 1937. Como ele, outros músicos de sua época tinham estreado no tango pedindo permissão aos pais porque ainda usavam calças curtas. Era o início da época de ouro, quando a dança, com a explosão de orquestras típicas, se tornou um fenômeno social. O tango era então, definitivamente para os jovens. Durante as últimas três décadas, a chamada “A Típica” como instituição esteve a ponto de desaparecer. Mas na década de 1990, a semente da orquestra típica pegou em uma nova geração de músicos. Primeiro foi El Arranque, que em 1997 despertou a consciência ao revisitar os grandes maestros, uniu-se a professores como Leopoldo Federico, Julián Plaza e Emilio Balcarce e promoveu projetos como a Orquesta Escola, para resgatar os diferentes estilos das Típicas executadas por jovens instrumentistas. Posteriormente, outras formações com uma atitude mais punk chegaram ao palco, como El Afronte ou A Fernández Fierro, que gerou seu próprio canteiro de músicos que acabou formando outras orquestras.
Buenos Ayres Club
Peru 571, bairro San Telmo
Nos anos 90, o Buenos Ayres Club foi o epicentro da cena punk-rock e trash metal de Buenos Aires e ainda hoje esses fantasmas são percebidos na essência da noite da Maldita Milonga, com sua atmosfera íntima, escura e glamorosa.
A milonga acontece em um antigo casarão de San Telmo, na rua Perú, 571, tem que ficar bem atento porque o ingresso passa desapercebido. Depois de subir uma escadaria íngreme, você vai dar com um salão amplo e pouco iluminado, onde mesinhas contornam uma grande pista.
La Maldita Milonga / La Bendita Milonga
A Maldita Milonga tem a peculiaridade e o recorde de ser a única milonga em Buenos Aires criada por músicos e com 17 anos ininterruptos de existência organizada em colaboração entre os membros da orquestra e Laura Heredia, (bailarina responsável pelas aulas), La Maldita nasceu com a intenção de oferecer as novas composições de El Afronte aos bailarinos de Buenos Aires e também difundir a milonga com uma orquestra ao vivo, que na época de sua fundação ainda era muito difícil de encontrar.

La Maldita é um verdadeiro reduto do tango que conta com um grande público ao longo do ano. A orquestra, como anfitriã, forjou seu caráter de vanguarda e ganhou reconhecimento aos ouvidos do público por meio de suas novas composições, dançadas pelos mais prestigiosos bailarinos da Argentina e do mundo. Com um ambiente cosmopolita, aberto a todas as pessoas e tolerante com todas as expressões do tango, você pode socializar, dançar e fazer amizade com pessoas das mais diversas origens e desfrutar do abraço mágico que o tango oferece.
Enquanto violinos, bandoneones e piano tocam clássicos e composições próprias, embaladas pela voz de Marco Bellini, dezenas de casais invadem a pista.

Enquanto os músicos assumem o palco, os bailarinos são convidados a tomar conta da pista, diferente de algumas milongas mais tradicionalistas, onde é preciso respeitar certas regras de etiqueta tanguera e ter certo nível de baile, esta aqui é bastante informal, descontraída e amigável para principiantes.
A Maldita Milonga se destaca por se tratar de um ambiente mais descontraído, sem muito da etiqueta e tradição das clássicas milongas, o que é bom para turistas e iniciantes no tango.
Às segundas-feiras acontece a Bendita Milonga, às quartas-feiras e os domingos a Maldita Milonga, nas terças-feiras a Milonga Queer. A noite transcorre mais ou menos assim:
- 21:00 . O local abre e começa a aula de tango para iniciantes e intermediários
- 22:30 . Termina a aula e começa a milonga, que vai até às 02h00.
- 23:00 . A orquestra El Afronte sobe ao palco. Depois da meia-noite, geralmente há uma exibição de dançarinos profissionais convidados.
Diferente de algumas milongas mais tradicionalistas, onde é necessário respeitar certas regras de etiqueta do tango, aqui o ambiente é bastante informal, descontraído e amigável para iniciantes.
Nas milongas tradicionais, o convite se dá com o famoso “cabeceo” (movimento sutil de cabeça e troca de olhares), mas na Maldita a coisa é mais explícita mesmo, o povo se aproxima ate a mesa para convidar bailar.
Aulas de Tango
Os instrutores organizam dois grupos: um para iniciantes, outro para alunos intermediários ou avançados. As orientações são dadas em espanhol, com tradução para o inglês.

“Por um lado, ao terminar cada aula, lhes contamos algumas regras que é preciso respeitar para poder participar do tango dança junto com os demais, como a direção na qual se dança e o respeito pela pista. Destacamos o maravilhoso que é se conectar com outra pessoa através de um abraço bailado, sem importar nem o idioma, nem a religião, nem a ideologia, nem a situação econômica ou o gênero. Tem gente que durante todo o dia não recebe nenhum abraço”, diz Laura Heredia, organizadora da Maldita Milonga.
“Em muitos casos, já não se sente cômodo convidar para dançar somente com o “cabeceio“, é possível se aproximar e convidar com uma palavra, sem o peso da frustração ante uma resposta negativa”, diz Laura.
Tango Queer
Buenos Aires é, sem dúvida, a capital gay da América Latina. Localizada no top 10 mundial do destino LGBTIQ (sigla que responde a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transsexuais, Transgêneros, Intersexuais e Queer), a cidade não só abre todas as suas portas sem distinção, mas possui um circuito noturno bem diverso.
A milonga está incorporando uma perspectiva de gênero na qual os papéis já não são os que se fixaram no passado, do tipo … o homem leva e a mulher segue, por exemplo. Cada vez mais vemos na pista casais do mesmo gênero ou câmbios de roles de acordo com o gosto de quem dança”, diz Laura Heredia, organizadora da Maldita Milonga.

“No ambiente do tango sempre se considerou que a dança era: um homem e uma mulher dançando, o homem conduzindo e a mulher sendo conduzida. O que fizemos foi nos apropriar do tango para dançar do jeito que precisávamos”, explica Mariana Docampo, referência do movimento de tango queer na capital argentina.
“No Tango Queer, qualquer um pode dançar com qualquer um: ou seja, um homem com outro homem, duas mulheres, um homem com uma mulher, pessoas trans, independentemente de sua identidade sexual”, explica Docampo autora do livro “Tango Queer Buenos Aires”.
fonte:
- https://www.elafronte.com/milonga
- https://www.dw.com/es/tango-queer-para-bailar-sin-roles-prefijados/a-55524618
- https://www.clarin.com/musica/pa-bailen-muchachos_0_rk9U0nBiPmx.html
- https://www.lanacion.com.ar/espectaculos/musica/juventud-divino-tesoro-nid825983/