SEMANA SANTA em OURO PRETO (MG): Dia 2 – Sábado dos Passos: O Depósito de Nosso Senhor dos Passos

Ontem na Sexta-Feira das Dores aconteceu a procissão do Deposito de Nossa Senhora das Dores na Igreja Mercês de Cima. Hoje em Sábado dos Passos, acontece a procissão do Depósito de Nosso Senhor dos Passos na Igreja Mercês de Baixo. Assim, cada imagem sai de sua casa para visitar uma paróquia da matriz vizinha.

O Senhor dos Passos é uma manifestação religiosa católica comum a muitas cidades brasileiras e realizada anualmente na transição da Semana das Dores para a Semana Santa, antecedendo o grande momento que todos aguardam para o Domingo de Ramos: A procissão do Encontro onde Mai e Filho se reúnem em grande marco que acontece na Praça Tiradentes de Ouro Preto.

Nosso Senhor dos Passos


Nosso Senhor dos Passos é uma invocação de Jesus Cristo e uma devoção, que faz memória ao trajeto percorrido por Jesus Cristo desde sua condenação à morte no pretório até o seu sepultamento, após ter sido crucificado no Calvário.

A história desta devoção remonta à Idade Média, quando os cruzados visitavam os locais sagrados de Jerusalém por onde andou Jesus a caminho do martírio, e quiseram depois reproduzir espiritualmente este caminho quando voltaram à Europa sob forma de dramas sacros e procissões, ciclos de meditação, estabelecendo capelas especiais nos templos ou mesmo a traves de pequenas capelas insertas no tecido urbano denominada os Passos da Paixão.

Nosso Senhor dos Passos no altar lateral da Matriz do Pilar

As dificuldades de peregrinação aos Lugares Santos incentivaram muitas pessoas a reproduzi-los em sua própria pátria. Assim Jerusalém, a Terra Santa,  a partir do século XV começou a ser importada através da chamada “peregrinação de substituição”. Em geral, buscavam encenar a tragédia humana e divina, imaginando o tema original do Calvário em Jerusalém.

Criava-se, então, o Caminho da Cruz  ou Via Crucis, representando as etapas da via dolorosa de Jesus Cristo, transpostas desde a Última Ceia, até a Crucificação no Calvário.

As irmandades do Santíssimo Sacramento e do Senhor dos Passos promoveram, nas Gerais, a introdução e a propagação do culto à Paixão. Somente em meados do XVIII surgiriam as Ordens terceiras carmelitas, francíscanas e as Confrarias do Cordão de São Francisco, que, seguindo a tradição ibérica reavivada após o Concílio Tridentino (1545- 1563), apresentavam no calendário festivo ritos pertinentes à Paixão de Cristo.

A celebração da Paixão, cujo momento maior na Igreja Católica é o período quaresmal e a Semana Santa, acarretou uma infinidade de manifestações religiosas nas Minas, especialmente por parte das irmandades do Senhor dos Passos que deveriam, além de colaborar nas provisões internas da Matriz, promover a execução e manutenção dos Passos. Eles investiam somas consideráveis na execução de andores e imagens em escala real para a realização das procissões da Semana Santa, portanto preocupações de ordem econômica estavam presentes no cotidiano dessas agremiações e, por consequência, dos seus festejos.

Os Depósitos e o Encontro


A sexta-feira tem um sentido especial para o católico por se tratar de um dia convidativo à consternação, interiorização e a meditação da paixão de Jesus Cristo em expiação pelos nossos pecados e os do mundo inteiro. No decorrer do tempo litúrgico, dedica-se ao seu dia a reza do terço a partir da contemplação dos mistérios dolorosos, que, a cada dez ave-marias e um pai-nosso, apresentam uma passagem dos derradeiros sofrimentos de Cristo.

Na quaresma, tempo de particular devoção ao sofrimento de Cristo e Maria, ela ganha uma tônica maior. Passa a significar para a comunidade o demarcador da antecipação e da preparação para uma sexta-feira maior, a chamada Sexta-feira Santa, dia que rememorará e reatualizará a morte do Messias. Por isso, são realizadas orações para purificação, contrição e arrependimento dos pecados, procissões, meditações da via sacra, das sete dores de Maria e rezadas missas em intenções diversas.

É em uma dessas sextas-feiras, especificamente a penúltima, chamada Sexta-Feira das Dores, onde acontece a primeira procissão da Semana Santa; O Depósito de Nossa Senhora das Dores na Igreja Mercês de Cima. No dia seguinte acontece o Sábado dos Passos cuja procissão tem por finalidade consumar o segundo depósito. esta vez do Nosso Senhor dos Passos é conduzido para Igreja Mercês de Baixo.

Finalizando o primeiro fim de semana no Domingo de Ramos acontecerá um dos momentos altos das celebrações da Semana Santa Ouropretana: a Procissão do Encontro, onde Mai e Filho se reúnem na Praça Tiradentes.

A diferença de Nossa Senhora das Dores cuja festa acontece em 15 de setembro o Nosso Senhor dos Passos não tem nenhuma celebração particular dedicada a ele na cidade. Tampouco existe hoje em dia uma associação leiga atuante sob a sua invocação, como a Ordem Terceira das Dores, por exemplo. Além disso, a imagem do santo na cidade é única e fica na Matriz do Pilar. Não há um Senhor dos Passos no Antônio Dias, o que sim acontece com a Virgem das Dores, presente em ambas as duas matrizes de Ouro Preto.

Na Matriz do Pilar, o altar-mor abriga a imagem de Nossa Senhora do Pilar, considerada a padroeira da cidade. Em locação mais próxima ao arco cruzeiro os altares laterais ganham um lugar destaque nas representações da imagem do Senhor dos Passos (do lado direito) e a de Nossa Senhora das Dores (do lado esquerdo) que ficam, desse modo, um diante do outro.

Interior da Matriz Nossa Senhora do Pliar

As Zeladoras do Senhor dos Passos


A “preparação cerimonial” do Senhor dos Passos não se dá da mesma forma como observamos em relação à Nossa Senhora das Dores onde as celebrações devocionais do Setenário servia como uma forma gradual de chegar ao ponto máximo da consagração, que culminava no Depósito da santa.

A imagem do Senhor dos Passos costuma ser preparada cerca de dois dias antes da saída da matriz do Pilar. Como sua procissão do Depósito do santo acontece sempre no sábado, um dia depois do dela, ele geralmente é aprontado na quinta ou na sexta-feira anteriores. Nesses dias, a zeladora dessa imagem se dirige à matriz para cuidar da troca das roupas.

Senhor dos Passos

Com cerca de 1,80m de altura, a imagem do Senhor dos Passos demanda um cuidado para a sua descida do altar. Mas uma vez que esse movimento se realiza, ele é levado até o centro da igreja. Ali a zeladora começa a intervir a peruca, a coroa de espinhos, o cordão e sua túnica que ao longo do ano ela fica guardada dentro da igreja num armário específico (assim como as outras três que a imagem possui no total), são duas separadas para a Semana Santa e duas para o resto do ano, no altar. Porém, para ser limpa ou ter uma parte restaurada, a zeladora pode leva-a para sua casa.

Depois alguns homens auxiliam na sua colocação sobre o andor, cuidando para que ele e sua cruz (esta, específica para a procissão, com uns dois metros de comprimento) estejam bem fixados.

Um dos objetos que marcam a história do cuidado da imagem do Senhor dos Passos desde os tempos do trabalho paterno, é um perfume. Foi um antigo zelador que instaurou aquela tradição. Desta forma, assim como as Virgens de posições desfilam cheirosas rodeadas de flores o Senhor dos Passos também será capaz de enviar seu cheiro até sua Mai, no dia seguinte, na Procissão do Encontro.

O depósito de Nosso Senhor dos Passos


A preparação material da imagem do Cristo tem como finalidade a sua saída em procissão na noite do sábado, exatamente um dia após haver ocorrido o Depósito de Nossa Senhora das Dores. A imagem dela saiu do bairro de Antônio Dias e foi levada para a Matriz do Pilar. A procissão do Senhor dos Passos faz o percurso inverso: o seu cortejo parte da Matriz do Pilar e terminará na Matriz do Antônio Dias.

Durante o trajeto, a figura do Senhor dos Passos é encoberta de panos de cor litúrgica roxos, significando que o julgamento de Cristo se deu de maneira oculta, obscura. Somente ao final da procissão ao entrar na igreja, a imagem será descoberta e exposta para a veneração dos fiéis.

Diferentemente da alternância que caracteriza as procissões com alguma das duas imagens de Nossa Senhora das Dores (anos pares/Pilar, anos ímpares/Antônio Dias), a procissão do Senhor dos Passos mantém sempre o mesmo trajeto, todos os anos. Afinal, como se trata de uma imagem única na cidade, só há uma “casa” de onde o santo possa sair, no caso, a matriz do Pilar. Mas o fato que sim fica fora do normal é a circunstancia de que a Matriz do Antônio Dias ainda esta em restauro pelo qual seu destino final será por enquanto a Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, a mercês de Baixo.

A fumaça do ambiente no interior da Matriz do Pilar anuncia a saída do santo

A movimentação das pessoas no interior da matriz ocorre por conta da missa que será celebrada às 19h. Para essa cerimônia, a imagem do Senhor dos Passos já está fora de seu altar, com a roupa e os cabelos específicos para a ocasião, posta sobre um andor e este coberto por uma tenda de tecido roxo que tem apenas a sua parte frontal aberta.

Enquanto a missa é realizada do lado de fora ouve-se a aproximação da banda de música que acompanhará a procissão, também vê-se um grupo de homens vestidos como soldados romanos que saem da casa paroquial, na vizinhança próxima da matriz, e se dirigem à porta da igreja.

A participação da guarda romana ajuda a compor o cenário da via sacra.

Num movimento complementar, do lado de dentro, assim que é encerrada a missa o sacerdote que a presidiu coloca uma longa capa sobre as suas vestes, isto é, acrescenta uma outra vestimenta ritual às que já estava usando, e se dirige à imagem sobre o andor. A capa do padre e a cobertura do santo têm as mesmas cores.

Em seguida, o coral inicia o canto de um moteto (canto em latim), de uma fala atribuída a Jesus, enquanto o padre incensa a imagem. O canto marca também o momento em que a parte frontal da cobertura do santo é fechada. É o momento a partir do qual o Senhor dos Passos já não pode mais ser visto.

Uma particularidade desta procissão é a presencia dessa cobertura que impede aos féis devotos contemplar a imagem durante o percurso da mesma

Mas … Porquê de se realizar uma procissão com uma imagem que não deve ser mostrada?

Do mesmo que embrulhamos os presentes de Natal ou de um aniversariante, o fato dele vir coberto de um elegante papel e lazinho, por um lado, não só enaltece a apresentação, mas também podemos dizer que esse passo prévio gera uma expectativa que antecede um momento de revelação. A revelação produz a surpresa, um efeito mágico por excelência, quando nossos olhos finalmente conseguem ver aquilo que a expectativa gerada pelo encobrimento. Enquanto a o porquê da surpresa, pode ser efeito de nossa própria expectativa (de algum desejo cumprido ou ter recebido alguma coisa inesperada), mas fundamentalmente pelo fato de conseguir ver finalmente, algo que antes estava oculto à visão.

No caso da religião toda revelação é mística, divina. O encobrimento do santo cria a possibilidade de ser revelado depois. O encantamento de uma revelação que sabemos acontecerá, no momento certo, demanda outra grande virtude; a paciência.

O andor coberto percorre a procissão

Dessa maneira, ao embalar, embrulhar ou mesmo esconder a imagem do Senhor dos Passos dos olhares curiosos antes do momento em que ela deveria ser vista, a tenda de tecido roxo, cujos bordados delineiam uma cruz na parte frontal do andor, serve também para interceptar o olhar das pessoas que participam daquele evento.

Ao ocultá-lo sobre o andor, sabe-se, em contrapartida, que ele haverá de ser revelado em algum momento e lugar … é justamente esse movimento, entre ocultamento e revelação, que caracterizará o Depósito do Senhor dos Passos.

A guarda romana permanece sempre no entorno do andor, compondo a parte mais final da procissão, cujo início é formado pelos membros da Irmandade do Senhor dos Passos, que carregam uma cruz processional, pelos coroinhas, ministros da Eucaristia, padres e seminaristas. Esses grupos todos seguem no meio da rua enquanto, nas laterais, formam-se duas longas filas de pessoas, várias delas carregando velas acesas. Depois do andor, com a imagem, há uma concentração de pessoas misturadas e, logo em seguida, a banda de música.

O cortejo segue um caminho específico, sempre utilizado para tirar esse santo do Pilar. Conforme a procissão avança vão aumentando as pessoas que se integram a ela, enquanto várias outras observam a passagem do santo das janelas de suas casas. Mesmo antes do andor chegar à Praça Tiradentes, no centro da cidade, já há um grupo de pessoas que aguarda a chegada da procissão. São moradores do Antônio Dias e, entre eles, destacam-se alguns homens vestidos com opas vermelhas, indicando que são membros da Irmandade do Santíssimo daquela paróquia. Com eles estão também o pároco do Antônio Dias e alguns auxiliares.

Quando o andor finalmente cruza o meio da praça, faz-se uma parada. Rapidamente, um homem, membro da paróquia do Pilar, sobe em um banco posto na frente do andor. Os padres presentes se aproximam, ficando ao redor dele. O coral também se aproxima e, em seguida, o pano frontal do andor é aberto.

Nesse instante, a imagem do Senhor dos Passos, antes oculta, passa a ser iluminada por uma pequena lâmpada acoplada ao andor. Ela pode então ser vista, mas só por aqueles que permanecem diante dela, as laterais e a parte traseira permanecem fechadas. Com a imagem destacada, inicia-se o canto do Pater, enquanto o pároco do Pilar volta a incensar a imagem. Em seguida, esse mesmo padre entrega seu longo manto roxo ao pároco do Antônio Dias. A substituição do padre que usará o manto representa, assim, o traspasso do santo entre as duas paróquias.

Logo que o cântico termina, a parte frontal do andor é novamente fechada. E, dali em diante, são principalmente os homens com as opas da Irmandade do Santíssimo do Antônio Dias que passam a carregá-lo. A procissão segue em direção à Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (em representação da Matriz do Antônio Dias). Conforme a procissão se aproxima, os sinos começam a tocar. A igreja vai enchendo e, lá dentro, todos aguardam no adro.

Interior da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões, a mercês de Baixo

O cortejo avança pelo meio da igreja. Daqueles que faziam parte da procissão (incluindo os membros de Irmandades e os guardas romanos), apenas os sacerdotes seguem e permanecem diante o público.

Eles ficam bem próximos da zona limítrofe demarcada pelo grande tecido vermelho posto na igreja. Ainda com todos em pé, os religiosos iniciam um Pai-nosso enquanto o andor com a imagem coberta é carregado para dentro do altar. A grande cortina é retirada, revelando a imagem do Senhor dos Passos, iluminada sobre o andor. Em seguida o coral inicia o cântico do Pópule meus, enquanto o sacerdote incensa a imagem.

Aquela imagem oculta durante a procissão agora fica exposta para os devotos apreciar. As pessoas querem se aproximar, beijar, tocar. A inclinação do rosto da imagem faz com que seu olhar se dirija às pessoas à sua frente gerando um ato de contemplação mutuo pleno de religiosidade.

 

fonte:

  • PEREIRA, Edilson Sandro. O Teatro da Religião: A Semana Santa em Ouro Preto vista a partir de seus personagens. 326 f. Tese (Doutorado). UFRJ/ Museu Nacional/ Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, 2014 (1)
  • A experiência barroca e a identidade local na Semana Santa de Campanha, Minas Gerais – Suzel Ana Reily (2)
  • Crédito foto: Ane Souz/PMOP
  • http://portal.iphan.gov.br/
  • https://pilarouropreto.com.br/artigos/
  • https://jornalvozativa.com/

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